domingo, 15 de dezembro de 2013
A pena do corvo
Comprei a pena do corvo por um preço absurdo. O contrabandista garantiu que pertencera ao renomado poeta. Possuo muito dinheiro. Quando afirmo isso, creia que não se trata de pouco. Para ter certeza de que tenho em mãos o artefato verdadeiro, mergulho sua ponta em um pote de tinta nanquim. Em seguida, começo a escrever em uma folha de papel branco. Pelo o que se afirma em nosso seleto círculo, o famoso prosador utilizou a pena em seus momentos mais febris de imaginação e criatividade. Seria essa a explicação para textos tão fantásticos e idolatrados pela contemporaneidade? Em sua própria época, o escritor não obteve o verdadeiro e merecido sucesso. Na era do computador parece uma prática tão sem sentido voltar-me para o uso da tinta e do papel que rio da minha necessidade de ter artefatos antigos. Porém, no caso da pena, sei que é diferente. Meus pares atribuem a ela um caráter mágico. Ainda sem rumo, sem saber como funciona exatamente, deixo a mente vazia para que o artefato guie minha mão. Inicio apenas com palavras soltas sem tentar explicar sua existência sobre o papel: Maeltzel, Maelstrom, Pfall, pêndulo, diabo, Metzengerstein, carta, mistério, Wilson, manuscrito, Berenice, gato, barril, casa. Cada palavra parece conter um universo, uma história para ser contada. Não demoro para identificar a origem desses vocábulos nos títulos dos contos de Poe. Continuo aquele estranho processo e das palavras começam a se ordenar frases prontas. Todas construções do imaginativo escritor do século XIX. Por um momento estremeço. Deito a pluma sobre a mesa. Não sabia dizer se aquelas palavras foram registradas pelo objeto ou pela minha própria consciência. A consciência representada pela lembrança exata de tudo o que havia lido da produção do mestre das letras. A razão e a loucura, às vezes, tornam-se conceitos tão próximos que já não sou capaz de diferenciar entre uma e outra. Fui eu mesmo que escrevi ou foi a pena do corvo que manifestou sua vontade? Sou favorável à segunda hipótese, pois tenho certeza de que não selecionei aquelas palavras, mesmo sendo conhecedor da obra do gênio. E se foi mesmo a pena que proporcionou o intelecto diferenciado do mestre? Então meus camaradas estariam certos, sem dúvida. Passo a acreditar que esse frágil objeto seguro entre os meus dedos seja um instrumento do mal, projetado por algum vilão ou ente demoníaco adversário da humanidade. Artefato insuflado por rituais sangrentos com origem nos tempos antigos em que ainda se pintavam hieróglifos em papiros. A pena do corvo liberta as palavras mais precisas do escritor e as arranja de forma ordenada nas orações, nos parágrafos, no enredo e na trama. Sorrateira, engana o infeliz que acredita escrever por vontade própria. Relega o usuário ao esquecimento em vida, o aprisiona em uma masmorra de tormento e indiferença. Leva à decadência e à degeneração. Induz à tristeza. Pois, o poeta acaba por não ser reconhecido pelo que melhor sabe fazer: compor, construir, esculpir, tecer a palavra em um conjunto de ideias. Sendo assim, seria o objeto também a causa do infortúnio de quem o empunha? A pena do corvo, ao mesmo tempo em que concede as virtudes das belas letras, também leva à degradação do humano? Pressinto que o artefato é pior do que qualquer outro vício, pois já tenho vontade de escrever novamente. Empunho a pena mais uma vez como se fosse uma arma capaz de retirar minha própria vida. Escrevi ou ela escreveu. Não havia importância mais em determinar quem era o autor. Certo é que me dava prazer redigir. Somente por isso, já valeria um pacto com o próprio diabo. Poe representou o chefe dos demônios em um de seus contos. Eu e a pena do corvo também. O título se delineou em uma das tantas folhas brancas dispostas sobre a mesa: Velho coxo do colarinho engomado. A primeira frase se construiu diante de meus olhos: “Eu, dois garotos e uma menina deixamos nossas casas no meio da noite”. O primeiro parágrafo continuou assim, depois da frase de abertura: “A lua cheia ajudava a iluminar a escuridão. Não havia luz elétrica naquela parte da cidade e as pilhas para lanternas eram caras. Por isso, levávamos lampiões. Exceto um dos meninos que se considerava mais corajoso do que todos. Vestíamos roupas pesadas para nos proteger do vento frio que assolava o sul do país”. Os parágrafos seguintes se sucederam nessa ordem: “Em poucos minutos chegamos à ponte. Uma ponte coberta que permitia cruzar o caudaloso rio da região e se proteger de alguma chuva inesperada. Fomos até lá para averiguar a veracidade da lenda que nossos pais contavam. Diziam que um velho coxo, de vez em quando, aparecia em um canto escuro da ponte. Começamos a cruzar a precária construção, e no momento em que nossos lampiões iluminaram a saída, do lado oposto, vimos o tal homem. Ele mancava. Tive a impressão de ver cascos no lugar de pés, mas não conseguia me mexer, meu sangue gelou nas veias. Vestia um traje preto, elegante e com o colarinho branco bem engomado. Disse, com um sorriso tinhoso no rosto: — Já que vieram me conhecer. Vamos apostar uma corrida. Acho que meu amigo não tinha plena noção do que estava acontecendo. Ele se achava realmente corajoso e esperto: — Ora, você quer apostar corrida? Não me faça rir. Ganho de você com um pé nas costas — riu. — O que você gostaria de apostar? — Qualquer coisa, eu apostaria minha cabeça com o diabo! E assim foi. Os dois começaram a correr: quem chegasse primeiro ao outro lado era o vencedor. Eu, meu outro amigo e a menina não conseguimos fazer nada a não ser gritar depois do fatídico acontecimento. Nosso amigo chegou antes do lado de fora da ponte. Realmente o velho era devagar, além de ter os movimentos desajeitados. Aquele velho, porém, se tratava do diabo em pessoa, tenho certeza. E, como todos sabem, o diabo é trapaceiro, não queria vencer, pois devia saber que um carro se aproximava. O motorista freou, mas não foi possível evitar o choque entre o veículo e o menino. O velho coxo do colarinho engomado sumiu deixando a nossa volta um cheiro inconfundível de enxofre e uma gargalhada que repercute em meus ouvidos até hoje. No dia seguinte, o corpo foi encontrado sem a cabeça na margem do rio. Estava sobre seixos sendo bicado por uma dezena de urubus. Meus pais costumavam alertar ‘nunca aposte sua cabeça com o diabo’. Eu sempre os obedeci, sem contestar.” Depois desse, outros contos começam a ser arquitetados. Tudo parece uma singela homenagem ao mestre. Extasiado e ao mesmo tempo exaurido de todas minhas forças, como se tivesse sido sugado por um vampiro a noite inteira, desfaleço com o clarear do dia. Acordo com o rosto sobre os papéis. Não havia sido um pesadelo. Reúno alguns pertences básicos em uma mala, entre eles a pena do corvo. Pego dinheiro e cartões de crédito. Telefono para o contrabandista que me vendeu o artefato. Marco viagem para a cidade de Baltimore nos Estados Unidos. Agora me interessam também os ossos de Edgar Allan Poe. Com o pó do escritor, planejo fazer uma tinta especial para auxiliar a pena do corvo. Creio que ela se tornará ainda mais eficiente se valendo da essência corporal do gênio. Depois disso vou adquirir as roupas que ele usava. Em seguida, desenterrarei sua esposa, ela deverá ser útil para ajudar na inspiração. O amor e a paixão são muito importantes para qualquer homem das letras. Poe, grande Poe, seremos um só, seremos eternos amigos. Aguarde-me, estou a caminho.
Escrito originalmente por Duda Falcão no site: contosdeterror
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