segunda-feira, 9 de junho de 2014

Frigorífico Humano

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Sabe, meu trabalho nunca foi o melhor de todos, e acho que nunca vai ser mesmo, na verdade só estou nele porque é de família e acho que ficaria com um peso enorme na consciência se fosse o único irmão que não seguisse o negócio de frigoríficos de nossa família. Meu nome é... Ah, não importa meu nome, isso não vai fazer diferença nenhuma. Enfim, trabalho num frigorífico numa cidade aqui do interior de São Paulo, e desde que eu comecei a trabalhar, é disso aqui que eu vivo.
Comecei quando criança, acompanhando meu pai e meu avô enquanto os dois analisavam os processos e faziam o que eles tinham que fazer, que para mim não tinha diferença nenhuma na época.Anos mais tarde e eu fiquei com um cargo importante, sou o responsável pela gerência de tudo aqui e do andamento dos processos. Não sou o mais velho dos irmãos, ainda sim, sou o mais responsável, e não querendo me gabar, acho que nenhum deles seria bom o bastante para ter esse cargo na empresa.
Era então uma noite de quinta-feira, havíamos embalados os últimos pedaços de carne que já estavam carregados no caminhão e já haviam sido mandados para o açougue. Fora eu, a única pessoa que se encontrava por lá era o nosso porteiro, que ficava em sua guarita bem longe de onde eu estava. Chovia bem de leve e estava um pouco frio, clima que eu particularmente gosto muito. Estava no matadouro, um local que me dá arrepios desde que eu era criança, e até hoje, casado e com filhos na universidade, tenho calafrios quando passo por lá.
Carcaças e restos mortais dos animais estavam empilhados em um canto, o cheiro era repugnante e penetrava em meu nariz quase me sufocando. Havia sangue seco espalhado por muitas partes do chão e havia uma parte em que ele se concentrava especialmente, onde ainda havia aquele líquido vermelho que não havia secado. Andei com cuidado e tapando meu nariz, sempre olhando para onde eu pisava.
Deixei minha prancheta com minhas anotações em cima de uma bancada, e junto dela coloquei minha caneta também. Naquela bancada, que na verdade ainda era parte do matadouro, havia uma cabeça de um boi parada bem ali. Estava, claramente, sem o resto de seu corpo, e tinha os olhos fechados e a boca contorcida numa cara de dor de quando sua cabeça fora arrancada de seu corpo. Tentei ignorar aquilo e segui andando.
A única coisa que faltava era ver se estava tudo em ordem dentro da câmara fria, que era logo no fim dali. Fui acendendo algumas luzes no caminho e apagando outras que eram desnecessárias. Meus passos ecoavam naquela imensidão, onde a única alma viva era eu. Abri a pesada e prateada porta da câmara fria, tomando cuidado e travando-a para que ela não se fechasse quando eu estivesse lá dentro e me fizesse morrer congelado. Provavelmente você deve estar pensando que foi isso que ocorreu, que a porta se fechou comigo lá dentro e eu fiquei isolado num local que fazia menos de dois graus Celsius.
Na verdade eu fiquei preso lá dentro, mas não desse jeito. Enquanto eu andava no meio daquele monte de carne e carcaças penduradas, e tomava cuidado, pois o cheiro era forte lá também, contava o estoque para ter certeza de que não faltava nada. Passava a mão cuidadosamente entre aqueles pedaços dos troncos dos animais pendurados em ganchos e via o sangue pingar no chão.
Facas e muitos outros objetos cortantes estavam deixados de lado numa bancada ali dentro também, junto de pedaços de ossos quebrados e partidos que exigiram muito esforço para serem quebrados. Havia um avental de cor meio verde cheio de manchas de sangue espirradas pendurado próximo à porta.
Já estava próximo de sair quando alguma coisa se movendo me chamou a atenção. As enormes peças de carne penduradas se moveram quando alguém passou a mão nelas, e como num dominó, uma foi levando a outra, balançando-se em um loop infinito. Meio coração gelou e eu peguei uma faca para me defender, mas nesse ato frenético, acabei pisando numa poça de sangue que ainda não havia secado. Bati com minha cabeça no chão e apaguei por tanto tempo que só Deus sabe o quanto foi.
Acordei bem mais tarde, completamente roxo de tanto frio e, o mais incrível, nu. Estava todo trêmulo e levantei assustado procurando minhas roupas. Instintivamente passei minhas mãos pelas minhas partes íntimas, pois jurava que havia sido estuprado enquanto estava desacordado, por sorte, não fora isso. Levantei-me ainda com a cabeça doendo e então me deparei com uma cena que eu queimaria meus olhos para não vê-la mais uma vez. No frigorífico, onde antes os restos mortais dos animais estavam pendidos, agora jaziam restos humanos, dilacerados e partidos. Homens, mulheres, crianças, idosos e jovens, havia de tudo ali.
Havia ainda somente membros separados, pedaços de braços e pernas fincados por um gancho, onde o osso ficava exposto e o sangue caía como a água cai de uma cachoeira. Cabeças também estavam presas naqueles malditos ganchos. Expressões assustadas das pessoas que foram mortas, com os olhos abertos e a língua para fora, cheio de cortes profundos e largos na face. Algumas vezes os olhos haviam sido arrancados da face e restavam somente órbitas negras e profundas, que choravam lágrimas de sangue.
Aturdido e quase tendo um ataque do coração, com um aperto na garganta enorme, eu saí correndo dali, quando de repente, diante de mim, a figura de um boi andando em duas patas, segurando uma prancheta, vestindo um avental ensanguentado e com uma caneta surgiu. Eu caí diante daquele ser demoníaco, sem reação e com vontade de chorar. “Achei o que faltava.” Ele disse como um humano e, de repente, dois outros animais, como ele, surgiram pela porta pesada da câmara fria e me pegaram pelos braços e pernas. Amarraram-me uma corrente pelo pescoço e eu fui então obrigado a ter de andar de quatro se não quisesse ser enforcado.
Com vontade de gritar e chorar, eu fui sendo levado para o matadouro. Ao meu lado, dezenas de bois e vacas com aparências humanóides trabalhavam e faziam suas funções como se aquilo fosse a coisa mais normal do mundo. Vi o momento desesperador quando uma vaca desceu o facão sobre o pescoço de uma jovem de quinze anos, decepando-a e tirando sua vida. Sua cabeça foi jogada num saco preto, onde jaziam muitas outras cabeças humanas, e o corpo foi levado para outro lugar que eu me recusei a olhar. Todos os humanos estavam nus e presos por correntes, chorando e gritando, sendo constantemente eletrocutados e queimados para pararem de berrar. Manter-me em silêncio nunca pareceu uma tarefa tão difícil.
Entrei então numa câmara menor onde um líquido quente e irritante foi despejado em mim por meio de um chuveiro velho e enferrujado. Conhecia aquele procedimento, estavam limpando meu corpo para o momento do abate. O líquido escorria e invadia meus olhos, eu o fechava e tentava evitar que o líquido entrasse, mas era praticamente impossível, e logo meus olhos estavam tão vermelhos quanto sangue. Tentei me contorcer e me mover, eles então apertaram a corrente em volta do meu pescoço e com uma vara incandescente marcaram minhas costas para eu me calar.
metal quente veio lentamente por trás de mim e se encostou a minha pele fazendo um leve som que rapidamente sumiu, desaparecendo e deixando somente o maldito calor queimando minha pele. Berrei de dor e caí no chão, não aguentado aquela tortura. Cai numa posição fetal, me contorcendo e soltando um grito contido e agoniado. O líquido jogado queimava minha ferida e quando o chuveiro se desligou, eu voltei a ser puxado. Fui sendo guiado por um caminho onde barras de ferro impediam que eu fugisse.
Do lado de fora, conseguia ouvir barulho de armas sendo disparadas e de gritos quando suas vidas eram arrancadas de suas carcaças. Eram tão distantes de mim, mas assim que o grito entrava em meus ouvidos, parecia que a pessoa morta estava do meu lado. Estava tão paranóico que às vezes sentia o toque da pessoa antes de ela morrer, uma ilusão total. Em cima de mim, vi bois retirando leite dos seios de mulheres mais velhas, enquanto elas tinham de ficar paradas sem mover um músculo.
As mulheres ficavam de quatro enquanto os animais despejavam o leite que saía de seus seios em grandes baldes redondos. As mulheres pareciam chorar, mas não podiam fazer som nenhum, caso contrário sua pele seria marcada com uma barra incandescente assim como a minha fora. Elas estavam nuas e tremiam muito. Desviei o olhar daquele inferno, tentando me isolar em minha mente.
Parei então dentro um local circular, onde eu pisava em restos de ossos humanos, que estalavam sob meu peso, e o sangue ali era o bastante para encher um rio. Acima de mim, minha corrente foi presa num gancho numa altura muito elevado. Logo entendi como seria meu fim. Tremendo como uma folha ao vento, tentei tirá-la de meu pescoço, mas foi inútil. Nos últimos segundos, olhei bem nos olhos do mesmo animal que eu encontrara no momento em que acordara, ele ainda segurava sua prancheta e caneta.
O boi fez então um marco na sua prancheta, que indicava que mais um animal havia sido abatido, e logo fez um sinal para que erguessem a corrente. Lentamente, senti a pressão da corrente em volta de meu pescoço aumentando. Desesperado, eu tentava insanamente tirá-la de mim antes que algo pior acontecesse. Percebi então que meus pés estavam deixando o solo e logo eu estava sendo erguido alguns centímetros acima do chão, sempre subindo, e conforme a altura aumentava, minha visão começou a criar pontos brilhantes e a escurecer. Entretanto, o tempo que eu estive erguido antes de minha vida se esvair de mim foi o suficiente para que pudesse ter uma visão completa daquele inferno que eu havia parado.
Porcos, bois e vacas andavam e agiam como pessoas normais, restos humanos eram jogados fora e os ossos eram triturados. Consegui ver um garoto de não mais de cinco anos sendo erguido por uma corrente assim com eu estava sendo, e num grito agudo e desesperado, seu pescoço se quebrou e ele ficou imóvel, pendendo balançando de um lado para o outro. Alguém chegou e em vez de desamarrá-lo, com uma vara afiada, lhe cortou a cabeça, o corpo morto caiu no chão com um baque surdo, partindo restos mortais debaixo de si, e a cabeça caiu e rolou para fora do cercado, ainda a tempo de um porco bípede pegá-la e jogá-la num saco preto sem dar a menor importância. Fechei os olhos e dei um grito mortal quando percebi que não havia mais o que eu pudesse fazer, simplesmente era o fim.
Não senti mais nada depois, somente meu corpo nu sendo erguido para o alto e a vida se esvaindo de meu corpo.Acordei assustado e tremendo ainda no matadouro, de alguma maneira, eu havia adormecido na bancada por ali e tivera aquele pesadelo horrendo. Levantei o mais rápido que pude e peguei minha prancheta e minha caneta, que eu havia deixado ao lado daquela cabeça morta, e se eu havia pensado que o maior choque da minha vida já havia acontecido, estava errado.
A cara do animal, que antes tinha os olhos fechados, agora tinha os olhos tão abertos como nunca e sua expressão de agonia havia dado lugar a algo que eu assemelhava com um sorriso. Na prancheta, novas rasuras haviam sido feitas e meu nome, que ficava sempre no canto superior para identificar que era meu, agora estava riscado com um “X” em cima, e logo ao lado, palavras em vermelhos diziam: Abatido.

fonte: Minilua
Autor: Júnior Mota

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